Pular para o conteúdo

hot dog.

maio 9, 2011

— Cara, você não pode dizer que faria alguma coisa e não fazer.

— To falando pra vocês. Duvidam?

— Conversa!

— Então vai lá…

*

Podia, ou queria, a essa altura já não entendia muito bem a diferença.

Os verbos se confundem depois de algumas doses que você nem lembra ter tomado mas paga de bom grado pra sair logo do bar, antes que ela mude de ideia.

Por isso foi em frente. Saíram. E a cada passo ela lhe parecia insuportavelmente mais provocante e quando abriu a porta do carro para que entrasse, jurou nunca ter visto um vestido tão perfeitamente sob medida para um corpo. Era cinematográfico. Embasbacante.

Foram conversando no caminho sobre alguma coisa que ele jamais vai se lembrar direito. O que ela falava pouco importava, mas a boca dela se movendo era o suficiente para acabar com a capacidade cognitiva de qualquer homem saudável. Era imprescindível ir em frente, não tinha o que fazer. Afinal podia, ou queria. Não era hora de pensar nisso.

A câmera do elevador não constrangeu. Ninguém sabe quem deu o primeiro passo, mas a resposta foi a altura. E a réplica, e a tréplica, e mal chegaram ao quarto, esbarraram na sala. Queria ver o quanto podia ir. Queria a respiração dela o mais perto possível. O seu oxigênio, o perfume dela entrando em seus poros. Enfincar as unhas. Mãos, olhos, pele, numa massa disforme e única. Podia dissolver-se nela, só pra ver se sairia inteiro.

E não importava quantas vezes pudesse, sempre iria querer.

*

A repetição é uma condição. Mas não existem repetições, apenas um querer de novo incansável. E essa é toda a diferença.

ano 1.

agosto 9, 2010
tags:

Algumas das melhores coisas que aconteceram na minha vida foram a partir de uma aposta. O blog completou um ano em Julho e, parar variar, teve início com uma aposta. Bem besta, como toda aposta deve ser. Eu e um amigo, cansados de não conseguir pôr em prática nossos anseios de criação (ele com desenhos, eu com textos), decidimos que um blog era uma boa ferramenta de disciplina e motivação para que produzíssemos, de fato, alguma coisa. O problema é que a nossa inércia era tão grande que nenhum de nós se movimentou realmente para criar o tal do blog. Patético. Daí entra a aposta: quem criar o blog por último perde. Nem me lembro se chagamos a apostar alguma coisa mesmo. Mas era isso. Perde.

Bom, perdi. Isso rendeu esse post aqui do meu amigo http://migre.me/13kai

É bacana ver como o conceito do blog mudou nesses doze meses no ar. Talvez o assombroso seja perceber como eu mudei nesse tempo. E isso fica muito claro  quando releio cronologicamente os textos. Chega a dar vergonha revisitar a minha cabeça de um ano atrás e, ao mesmo tempo ver que algumas coisas estão exatamente as mesmas. Mais do que eu gostaria. Comecei o blog por um objetivo. Hoje, mantenho ele por outro e espero que ele continue mudando. Hoje, acho que esse blog é uma das coisas que tenho, das quais mais dou valor.

Em 1 ano de blog percebi: sou muito menos interessante e escrevo muito menos, em quantidade e qualidade do que pensava ou gostaria. Escrever no blog foi o processo que precisei passar pra dar este tapa em mim mesmo. Mas sinto que essa falibilidade na minha segurança acabou tornando a escrita mais instigante, de certo modo mais madura. Cada dia eu me acho mais falho e, por isso mais interessante. Esse desvendamento das falhas, esse desnudamento que é publicar palavras, esse processo que só consigo escrevendo, é o grande motor que me faz continuar.

Agora é esperar mais um ano pra ver por onde vou morder a minha língua novamente.
Aqui vai uma lista particular dos textos preferidos. Pode ser um guia de como não perder tempo nesse blog porque honestamente, os outros não valem a pena. De verdade, sem lenga-lenga ou mimimi. Gastaria o meu tempo vendo os links bacanas aqui do lado! Isso é o que vale.

É isso.

Sem concerto. 7 julho, 2009
Conto em primeira pessoa. 7 julho, 2009
auto retrato e chega por hoje. 7 julho, 2009
Condicional. 25 julho, 2009
A série Caetano/Celina se salva pelo conjunto. Mas individualmente falando, gosto só dos textos:
Caetano. 13 de agosto, 2009
Terceira impressão. 28 agosto, 2009
Quando se acorda. 18 setembro, 2009
A série 27 eu gosto. Mas principalmente:
27 segundos. 8 novembro, 2009
Mesmo que mude. 8 dezembro, 2009
Da morte e seus desdobramentos. 12 dezembro, 2009,
Branco. (outudo que eu sempre sonhei). 22 dezembro, 2009,
Na lanchonete. 31 dezembro, 2009
Capítulo 31 / pág 216. 23 janeiro, 2010
Pedaços. 23 janeiro, 2010,
do conceito [3].  25 janeiro, 2010
Querido público. 5 abril, 2010,
última. 22 junho, 2010,
Conto em primeira pessoa [2]. 23 julho, 2010,

foram 48 posts. Em 1 anos são 4 posts por mês. Ridículo.

Conto em primeira pessoa [2]

julho 23, 2010
tags:

Eu não sei. Acho que estou perdendo alguma coisa.

Não digo pela parte óbvia da história. Não é pela viagem, por você ir embora. Não é pela consequência imediata de não te ter mais no meu dia dia. Na realidade faz tempo que você não faz parte do meu dia dia. Em algum momento, lá atrás, eu já te perdi. Mas o fato de você estar sempre por perto, saber que está ao alcance, e que só me bastaria coragem e decisão pra tentar mudar as coisa, resolvê-las, bater na porta da sua casa, é o que me dá segurança. Uma segurança estranha, porque é um vir a ser que nunca se concretiza. Mas pelo menos, estar sempre por perto me faz acreditar que as coisas entre nós pode se resolver, mágica e naturalmente, com o tempo (essa entidade que todo mundo diz ser o segredo do universo).
O que eu estou perdendo não é você. Afinal é só uma viagem e eu sei que você volta. O que eu estou perdendo, mesmo, é a chance de acertar as coisas entre nós.

Eu não termino as coisas e acho até que tenho mesmo uma relação masoquista com o impasse da nossa situação. No fundo, acho que gosto de não resolver as coisas entre nós, deixar tudo suspenso, meio sem jeito, como se a todo momento estivéssemos juntos numa corda bamba e, num leve movimento, meu ou seu,  poderíamos pender para um lado ou para outro e cair pela vertigem da altura. Acho que no fundo gosto disso, acho até romântico. Todo mundo precisa de um leitmotiv pra sobreviver, uma grande história. E talvez não seja bem você a minha grande história, mas sim essa nossa situação estranha que chegamos. O meu grande paradigma, o que me movimenta. E por isso não posso resolver. Resolver a nossa situação é acabar com o meu leitmotiv. Não posso nem seguir adiante nem voltar para trás. Esse impasse com você, me faz acreditar num futuro que eu sei ser inalcançável, mas é disso que eu preciso. É a cenoura na frente do burro. A busca me conforta mais que o fim. Isso pesa, esse impasse ocupa um espaço. Até mesmo sufoca. Mas nesse sufoco que eu existo. O meu problema é que acredito que a menlaconia é bela, o sufoco é sublime.

Mas agora não. Com você longe, as coisas mudam. Indo embora você se liberta desse jogo sádico de corda bamba e vai viver outro lugar, outras histórias, outras pessoas e quando voltar, vai ser tudo outra coisa. Lá, esse impasse some, porque eu sumo, a minha figura, a minha presença, na minha voz, meu corpo. Lá eu não existo. Quem diz que as distâncias não separam as pessoas não passa de um escritor de frases de calendário. Separam sim. De modos diversos, com intensides e consequências que variam, mas separam. No nosso caso, de ínicio não vai mudar muito. Talvez troquemos emails com a simpatia educada que aprendemos a ter um com o outro; falaremos de besteiras que acontecem aqui comigo e ali com você; mas aos poucos a realidade vai se distanciar, as conversas não vão mais fazer sentido; aí vamos forçar os assuntos, a minha presença vai começar a sumir do seu mundo, a sua imagem a desaparecer do meu; aí vou ficar olhando pra algumas fotos, sentado na frente do computador; você vai encontrar outras histórias, outras possibilidades. Mesmo eu não querendo as coisas aqui vão continuar sem você, o nosso impasse vai desaparecer, por completo, até que o peso chegue a zero. Você partir, significa justmente o fim do meu delírio. O fim do sufoco, o fim do peso. Uma leveza insustentável.

Você está indo embora e eu não posso fazer nada. Por isso eu tenho medo.
Imerso na àgua. Um silencio absoluto. O corpo à deriva e a àgua inundando por dentro. Eu tenho medo de voltar a superfície, de respirar, encarar o oxigenio. Eu não sei o que vai acontecer quando eu tiver que encontrar outra história pra mim, quando finalmente você ficar livre e assim, eu estiver livre. Eu tenho medo porque não sei se consigo encarar a queda da altura em que me pus. Medo do leve. Medo do fim, do fim da busca.

O sobre nós acabou, sem nunca ser.
Como um elefante no estomago de um pardal. Ouvi essa expressão num filme chinês. Achei bonito.
Eu queria poder me despedir no aeroporto. Mas eu sei que não vou.

kubrickanas.

julho 16, 2010
tags:

última.

junho 22, 2010

Queria queimar. Rápido. Veloz. Com muita força, carbonizando tudo que me rodeasse. Sobretudo queimar. Em chamas vermelhas, fervendo toda a minha vida de uma só vez. Com violência. Sem respiro. Queria nem respirar. Mas respiro. E queimo. Respiro. O máximo que consigo. A ponto de sufocar com o ar que engulo. Quero sentir cada célula respirando, o trânsito do oxigênio, minha pele e os seus poros. Túneis de vento que dão acesso ao pulmão. Respiro até que ele estoure, feito balão de fim de festa. Ofegante. A todo momento quero isso. Quero ouvir cada ruído que chega aos meus ouvidos com a maior potência possível. Como se fosse a última nota do universo. Arrebentar os tímpanos. Conversão das ondas sonoras em impulsos nervosos, de tal ordem, que perde-se o equilíbrio. Racha as estruturas, levando os ossos a pó, os órgãos entrando em choque. Salivaria. E cada gota de saliva contém o segredo do mundo, prestes a despencar da vertiginosa altura que separa minha lingua do chão. Explodiriam, as gotas de saliva, no piso de azulejo como bombas nucleares, dizimando uma população secreta de microorganismos. Plena combustão. Busco qualquer coisa me arranque uma expressão. Cada movimento quero que seja o último. E quero empenhar todo meu corpo nisso. Forçar as fibras dos músculos até que elas arrebentem como cordas de uma guitarra enferrujada. Queria gritar de dor. Esfolaria a garganta, até sangrar. Até que eu grite a dor do próprio grito. Até que eu seja então somente o grito. Nada mais. Me desmaterializar. Consumir e sumir com a minha carne. O meu corpo. O espírito. O máximo. Toda fúria em cada expressão de se ser. Queimar como um fósforo, uma tocha. Como um casarão abandonado. Como um castelo. Império. Intenso. Absoluto. Nocivo. Corrosivo. E que a cada vez que eu olhe para algo, possa realmente acreditar que aquilo é tudo o que interessa. Tudo me interessa. Por isso quero afogar meus olhos na luz gravando a imagem que enxergo. Não quero só olhar. Quero a maior intesidade, no último volume, no insuportável, no claustrofóbico, no exagero, no intoleravel, no transbordo, no impossível, me devorando, destruindo, no presente, onde a existência nunca é a questão.

junho 22, 2010

Somos sobretudo a memória que temos de nós mesmos

células [1]

maio 27, 2010
tags:

– Que pesa mais? 3,7 quilos de picanha ou um canal dentário?

– Uma vez um amigo me disse que tinha a sensação de que nas festas (esses grandes eventos juvenis regado a álcool e músicas de gosto suspeito; praticado com maior ênfase no ingresso da faculdade (mas não necessariamente) que, difere de uma balada qualquer (balada! Não me acostumo com essa palavra), por exemplo, pelo fato do público participante derivar de um grupo controlável e um nicho minimamente próximo que convive com você, de tal forma que esse habitat comumente vivenciado na rotina se desloca para dentro desta tal festa propiciando todas as quebras de protocolo, abertura de todas as válvulas de escape, supressão e quase aniquilação do superego) a maioria das pessoas saía perdendo e não, ao contrário do que possa parecer, ganhando. Discordei. Mas não tenho certeza.

– Eu sou exatamente aquilo que nunca imaginei ser quando crescesse.

– A ironia está em alta. E há muito tempo. Isso me preocupa. Preocupa pois perde-se muito facilmente a mão entre o seu uso como ferramente de humor ou como ferramenta de opressão. A ironia ganhou o status de comentário sofisticado. Não é uma simples constatação – é a superação dela. ironizar é estar acima. Assim, todos querem tecer o seu comentário sofisticado blasésuperiorarrojadointelectualcomovocênãopercebeuissoantesmeubem?
Quem ironiza primeiro, vence o jogo. A ironia como forma de deixar o rei nu, por vezes, é perversa. Isso me preocupa.

– Se eu fosse um animal, seria camaleão. Se fosse uma comida, seria aquele pacote de feijões de todos os sabores do Harry Potter. Se fosse um objeto, seria aqueles anéis da infância que mudavam de cor segundo o humor de quem usava (alguém lembra disso?).

– Ouvi o cd debut do XX tardiamente. Não sabia o que estava perdendo. De alguma forma sinto que ele é a voz/síntese precisa de toda uma geração, mais especificamente, o adolescente de hoje (por mais que ele possa não se reconhecer. Isso é outra conversa). Falando assim, sem argumentos não tenho crédito nenhum, eu sei. Ainda vou escrever detalhadamente sobre isso, só não sei como. Isso porque esbarrei numa questão intermediária: sempre acreditei fortemente nas diferenças e especificidades culturais, mas alguma espécie de intuição onírica me diz que esse álbum fala de uma juventude universal sem tocar diretamente em valores universais. Por sua vez essa percepção me arremessou pra outra especulação – O desenvolvimento assombroso nos meios de comunicação/interação, que aproximam o mundo cada vez mais, suprimindo espaços, distâncias, barreiras, não estariam também aproximando, juntando, coletivizando, universalizando as nossas questões, as questões, por exemplo, de toda uma geração que nasceu imersa nesse cenário?
Enfim, preciso pensar mais.

– Meu próximo texto vai se chamar café e flores. Meio fofo demais, não? Talvez mude de idéia.

A insônia que faria o café da manhã de Irandhir Santos descer como se fosse fígado acebolado.

maio 19, 2010
tags:

Foi no esforço de não pensar em nada, enquanto observava deitado na cama as luzes que entravam pela fresta da janela e batiam direto no teto, escorrendo por ele a medida que passavam carros pela rua (uma forma sofisticada de contar carneiros pulando a cerca), que Irandhir se pegou ensaiando pela oitava ou décima vez outra conversa com Ela.

Irandhir era desses homens que viviam a beira de desabar pelo sono. Caminhoneiro de profissão e opção, tinha pouco tempo pra tudo. Pouco tempo para cumprir os prazos, pouco tempo para realizar as entregas, pouco tempo para comer, pouco tempo para se divertir, pouco tempo para a cerveja, pouco tempo para suas vontades, pouco tempo para conversas, pouco tempo para ter vontades, pouco tempo para ter amigos, pouco tempo para ter mulheres, pouco tempo para o mundo que não o do asfalto e, por fim, pouco tempo para o seu sono. A única coisa que tinha com larga certeza, era sua prória companhia.

O problema de Irandhir era que quando podia dormir, não conseguia. Os médicos culpavam o estresse. Irandhir, pobre diabo, que de estressado não tinha absolutamente nada, conformava-se  que sua situação simplesmente não tinha jeito.

Com tanto sono acumulado, mas que não vingava numa noite bem dormida, Irandhir desenvolveu uma curioso hábito de sonhar por conta própria. E por isso lá estava ele deitado num hotel barato de estrada, olhando as luzes dançando no teto, sem nem ao menos ter tirado os sapatos, numa cama sem lençóis que cheirava a mofo.

Ela não lhe saía da cabeça. Ela sufocava o seu sono e tomava conta de sua consciência, tomava conta da sua imaginação. Irandhir, sem se dar conta, ensaiava diversas conversas, diversas situações com Ela, mas esses ensaios acabavam sempre da mesma forma que ocorria na realidade. Sem fim algum, sem desfecho. Nem fracasso nem répiendi. Sempre um…vir a ser.

Nem mesmo a imaginação dele era capaz de desemaranhar a sua situação com Ela. Na realidade esse é o ponto. Por mais que ele tentasse se enganar, sabia que não existia uma “situação”. Por isso, toda vez que imaginava, era ele tentando resolver algo que para Ela não era nem uma questão. A “situação”, para Ela, nem existia. Irandhir era imbatível para qualquer estrada, para qualquer carga, qualquer tempestade ou sol de derreter os miolos. Só não podia com Ela.

(Outro carro passa lá fora e a luz no teto o trás de volta pro quarto)

O que Irandhir queria era saber falar bem, falar bonito. Queria saber ser interessante. Ele queria saber sobre Ela. Seria o suficiente. Vontade de conhecer. Era isso que tinha. Por mais que se esforçasse, os raros momentos que voltava pra sua terra eram poucos e ele nem sabia se Ela sabia o seu nome.

– Me vê uma cerveja e um tanto desse amendoim – era a única frase que trocava com ela sem titubear. Era a única frase que pensava naquele torpor de sonho sem sono.

De que serve a imaginação se ela não te transcende? Não te transforma naquilo que gostaria de ser?
 Irandhir percebeu que até a imaginação podia ser covarde. Deitado na cama o que Irandhir fazia era remoer as coisas. Tudo não passava de uma insegurança disfarçada de insônia. Eram tantas coisas que ele gostaria de falar que seria necessário uma vida, não uma conversa. Na verdade ele queria ter uma conversa sem palavras. Aparentemente elas costumavam atrapalhar.

Outro carro passa lá fora. Irandhir acha melhor pensar em café da manhã.

Querido público.

abril 5, 2010

Quando se dá o último gesto e se profere a última palavra que encerra o desfecho, as luzes se apagam na mesma velocidade que os meus músculos congelam, a respiração pára e o olhar já não vê o que há pela frente. Em frações de instantes o som das palmas, que logo viram aplausos, irrompe aos ouvidos como a mais deliciosa melodia. A cortina cerra lentamente e, antes que ela volte a abrir e as luzes acenderem, tenho algo em torno de dois ou três segundos para me recompor, desvestir o personagem e encarar, desta vez com meu verdadeiro rosto, a platéia. E este som dos aplausos, das saudações, do calor e reconhecimento é algo que sem dúvida me faz continuar.

Contudo, engana-se quem pensa que esta é a maior recompensa que o artista pode receber.
Quando as cortinas abrem-se novamente e encaro a platéia efusiva, aplaudindo de pé, interesso-me por aquele raro indivíduo sentado e encolhido que mal bate palmas. Uma mão está grudada no apoio de braços, a outra está sutilmente na frente do queixo, com os punhos cerrados apertando um pedaço de qualquer coisa que não existe. A boca um pouco entreaberta não se mexe; os olhos me encaram em cima do palco, mas é como que se eles enxergassem além de mim; os ombros estão caídos, como se faltasse estrutura e força; na garganta quase que se pode ver um nó se formando; o semblante expressa uma inexplicável indeterminação. Este indivíduo me interessa.

Sei que ele me priva de seus aplausos, não por descontentamento, mas por incapacidade. Sei que ele foi plenamente atingido pela peça e que em seu corpo ainda corre a ressonância da apresentação. Sei que cada parte da sua pele ainda sente, foi atravessada e que dentro dele as estruturas sentiram o impacto do texto, do som, das luzes, a explosão de cores, o ato cênico. Sei que os três segundos que a cortina ofereceu de brecha entre a ilusão e a realidade não foram o suficiente para ele se desvestir do seu papel de platéia para o papel de admirador. Aquele homem sentado, sem ação, não bate palmas porque ainda é platéia da peça que não saiu da sua carne.

Esta, querido público, é a maior recompensa.

Sangue.

fevereiro 10, 2010
tags:

Quando se cortou, seu primeiro reflexo foi contrair os braços trazendo a mão para perto do corpo. Olhou para o seu dedo anular, logo depois para as folhas mal-intencionadas-e-traiçoeiras em cima da mesa. Com o polegar e o indicador da outra mão pressionou o dedo cortado de maneira que pode ver claramente o corte se abrindo e fechando, respirando no meio da carne fofa da ponta do seu dedo. Com uma espécie de fascínio continuou naquele gesto que lhe causava dor. Achava estranho que não sangrasse. Pressionou com mais força.

Lembrou de uma antiga crença que diz que no dedo anular há uma veia que vai direto para o coração sem ramificações, daí que teria vindo a tradição de se colocar o anel de casamento neste dedo. Como se isso tivesse algo de mais, pensou.

Por fim um filete de sangue emergiu e escapou pelo corte. Ficou olhando como ele escorria. Já não era mais ele, o sangue. Uma vez fora, o sangue já não faz parte de nós, é um estranho, é só um líquido espesso, salgado, vermelho. Naquele instante pensou que todo corpo dependia daquilo que saía por aquela fenda de 2 milímetros. Que aquele líquido corria em todos seus órgãos e mantinha tudo funcionando, inclusive seus pensamentos inúteis. Era difícil acreditar que entre seus irmãos corria este mesmo sangue com características semelhantemente únicas herdadas de seus pais. Aquele fio vermelho desenhado do corte até a palma da sua mão esquerda não podia representar tanta coisa. Parecia tão… algo sem muita…expressão.

Olhou de novo as folhas de papel que agora não estavam mais mal-intencionadas-e-traiçoeiras, e sim empilhadas-e-burocráticas com o nome do seu filho nelas. Devia reler esses papeis e encaminhar o processo, apelar para a lei, exigir a punição. Não importava o quanto sua mulher lhe suplicasse pelo contrário, pelo bem da família, pelos netos que viriam, pelo seu instinto paterno, por o que quer que fosse possível. Já estava decidido – não corre sangue na justiça –  é o que ele dizia.

Do conceito (3).

janeiro 25, 2010
tags:

Escrever é como fotografar. Só que com palavras. Mas ao invés de se registrar o que está fora, capta o que está dentro. Poucas coisas me remetem ao passado com tanta fidelidade (fidelidade?) ou pelo menos com tantos detalhes. Escrever é defender o  presente e também uma forma de não deixar que ele se dissolva no depois. Radiografia do instante que não se enxerga, que não cabe numa imagem, mas que cabe no papel, criptografado na ordem exata que se dá ao alfabeto.  Uma fotografia cega. Ou melhor, que vê dentro.

Pedaços.

janeiro 23, 2010

O sapato molhado já não me causa desconforto. Alguém, uma vez me disse que durante o período que esteve na guerra, sua dor de dente era o que mantinha-o vivo.

Algumas vezes sinto que nada me surpreende verdadeiramente. É como se a vida não se fizesse, não se inventasse. Pelo contrário, já está aí, inventada, esperando acontecer, esperando ser vivenciada pelo nosso corpo como se fosse alguma novidade. Não. Não estou falando de destino. Antes fosse assim, facilmente classificável. Diferente de uma pré-determinação do que está por vir, vejo a minha vida como uma grande e decadente garimpagem.  

Recolho pedaços que encontro jogados por aí. Decido que servem pra mim. Poderia muito bem pegar outra peça qualquer, mas só tenho dois braços, duas mãos. Junto, passo cola, costuro, remendo. Esses pedaços não são nada originais, cheiram a velho, mofado, molhado. Suspiro mais por inércia do que por vontade, e chamo isso de emoção.

Não tiro os sapatos. A sensação gelada nos meus pés me dá a certeza de que, ainda, sinto.

Capítulo 31 / pág 216.

janeiro 23, 2010

– Você – disse Gregorovius, olhando para o chão – está escondendo o jogo.

– Por exemplo?

– não sei, é só um palpite. Desde que o conheci, você não faz outra coisa senão procurar; mas agente tem a impressão de que aquilo que anda procurando já está em seu bolso.

– Os místicos falaram disso, embora sem mencionar os bolsos.

– E, enquanto isso, você estraga a vida de uma porção de pessoas.

– Elas consentem, meu velho, consentem. Não é preciso mais do que um pequeno empurrão. Eu passo, e pronto. Nenhuma má intenção.

(…)

– Você – disse Gregorovius, olhando outra vez para o chão – está escondendo o jogo.

Na lanchonete

dezembro 31, 2009

 

Ela diz alguma coisa para mim. Sei disso porque seus lábios se mexem sem parar. Sei disso porque o campo de visão humano capta mesmo aquilo que está fora de foco, escapando pelas bordas dos olhos, fazendo com que eu consiga perceber ela gesticulando, movimentando as mãos, mas nada muito além de borrões. Está sentada ao meu lado, conversa comigo, mas o que, eu já não sei. Pode ser algo importante, isso que ela está querendo me contar. Pode ser uma pergunta e, se for, não saberei responder. Não tem importância. Pelo menos agora, nada importa mais do que o sache de açúcar que está prestes a cair da mesa à frente. 

A situação se deu da seguinte forma.

O homem de terno preto, gravata cinza, entrou num passo ligeiro, como quem está com o horário de almoço contado, ou que estacionou em local proibido. Mas não devia ser nem uma, nem outra coisa pois, apesar de tudo, demonstrava  tranquilidade. O caso é que se dirigiu até outro rapaz, semelhantemente vestido, que o esperava com uma bebida em sua xícara e brincava com o desnível de sua mesa  que a deixava manca de um lado. Antes de se sentar, o homem recém chegado pediu um café para garçonete que passava. Finalmente sentou. Trocaram algumas dúzias de palavras. Pareciam animados. Podiam estar conversando sobre trabalho, futebol, televisão, cinema, mulheres, casamento, homens, adultério, amendoins tostados, filosofia grega, bolsa de valores, regime, metrosexualidade, problemas do casamento, problemas de solteiro, poker, blues, ou melhor, jazz, sobre o assassinato de uma freira num vagão de metrô, o aparente superdesenvolvimento das crianças devido aos hormônios nos frangos de hoje em dia, a queda de outro avião, a garçonete bonita e quem a convidaria para sair. Então ela voltou, a garçonete, trazendo o café num pires com uma colher e uma cestinha de palha que continha cerca de 8 saches de açúcar, 10 de aspartame, e um adoçante líquido, isso se fosse igual ao que trouxeram para nossa mesa. Ninguém convidou  a garçonete para sair. Ao invés disso, continuaram distraídos com o que falavam antes.

O homem pegou um sache de açúcar.

Abanou para que o açúcar descesse para um lado do pacote, deixando o outro livre para abrir. Com um movimento elegante e ao mesmo tempo automático rasgou o papel da embalagem, sem olhá-lo, lentamente, pois prestava atenção à fala do outro rapaz. O rasgo não atravessou o pacote todo, de modo que se formou aquele penduricalho do picote da embalagem. Provavelmente achava que assim a bagunça era menor, já que não se dividia o sache em duas partes. Despejou todo o açúcar na xícara. Cuidadosamente, qualidade que apreciei muito, dobrou diversas vezes o sache já vazio, até que virasse um pequeno quadradinho que postou na borda do pires, um verdadeiro ritual. Pegou a colher e mexeu o café com movimentos círculares, no sentido anti horário. Desceu a colher novamente no pires, e trouxe a xícara à boca. Provou. Dirigiu um rápido olhar ao café, franzindo a testa. Largando a xícara, pegou outro açúcar da cestinha de palha.

O ritual se repetiria. Novamente aqueles gestos precisos e ao mesmo tempo tão naturais. O mesmo rigor, o mesmo procedimento. Mas para minha surpresa, desta vez, ele não pôs todo o conteúdo do pacote. Com o mesmo cuidado de todos os movimentos, pousou o sache de açúcar, com a sobra que restou, na borda da mesa, próxima à cestinha de palha, de tal forma que pudesse eventualmente utilizá-lo convenientemente em outro momento. Experimentou novamente o café e, pelo jeito, aprovou.

Pouco a pouco a mesa balançava, pedindo por um calço qualquer. Pareciam não se incomodar. Talvez por isso não reparassem que o sache pendia cada vez mais para o limite da mesa. Mais um solavanco. Foi suficiente para que o sache deslizasse ficando metade na mesa e metade suspensa. A conversa deles não se abalou com o fato, mas minha respiração parou.

Imaginava diferentes formas do pequeno pacote de açúcar se atirar dali de cima. O picote solto balançava levemente debochando da altura. Ele poderia rodar, cerca de duas vezes, perdendo o pouco do conteúdo que ainda restava, chegando vazio ao chão. Inverossímil. Poderia cair objetivamente, sem rodeios, com a parte pesada para baixo e por fim, terminaria deitada no chão. Mais convincente. O homem poderia perceber e resgatar o sache ou a garçonete voltar e chamar a atenção deles dizendo – Senhores. Reparem ao sache prestes a cair da mesa. Um ventinho e ele já era. Mais consideração, por favor!
O ventilador, na parede à esquerda, gira no automático e está a ponto de ficar frente à mesa manca. A tensão é insuportável para mim.

– Você está me escutando? Pergunta ela, com seu habitual timbre de voz irritado, sentindo-se não mais que um borrão.

Olho para ela e fico sem fala.
Não me acostumo a voltar para este mundo de perguntas e respostas.

Domingo.

dezembro 26, 2009
ouça:
http://www.youtube.com/watch?v=bQwkbRVqqxU&feature=rec-fresh+div-r-5-HM

 

_

Às vezes quero caminhar no meio da rua, como se não existissem os carros. Sentir o domingo com o calor do sol que lambe o meu rosto e poder viver alguns momentos em câmera lenta, de tal forma que até mesmo o pó daquela folha que gira indecisa no ar, não se perca em meio à velocidade da cidade, em meio aos painéis de propaganda, em meio à vida aflita das outras pessoas.

Os domingos são uma espécie de era uma vez. Parece que ele tem um potencial de filmes de cinema. Parece que nos domingos se pode tudo. Parece que posso finalmente enxergar além da epiderme da cidade. Ser protagonista do meu dia.  

Vou caminhar no meio da rua, não me importando muito com os carros. Vou ver o que estava reservado pra mim este tempo todo. Vou passar na rua da casa verde. Vou ver os garotos desafiarem a arquitetura com seus skates. Vou ouvindo discman, porque sou nostálgico. Vou sair sem carteira. Vou dobrar à direita sem saber onde vai dar. Vou passar no hospital pra ver a minha vó, sabendo que ela está bem. Vou buscar o vermelho, o azul. Vou atrás de um músico de rua que me surpreenda, sabendo como isso é difícil. Laranja. Vou sem guarda chuva, esperando que chova. Verde. Vou querendo encontrar alguém, mas sem nada marcado. Não quero olhar pro relógio. De que me servem às horas?

Branco. (ou tudo que eu sempre sonhei).

dezembro 22, 2009
tags:

   

Tudo era pura questão de se acostumar.  

De vez em quando fingia que não. Fingia que podia ser diferente. Mas sabia que se agarrava a essa possibilidade como uma criança se agarra à inocência, querendo não crescer.  

Em Agosto o branco do céu é mais ofuscante. (Branco?) Então não convém reclamar. Era de se agradecer. Mulher, filhos, casa própria. Sua felicidade vinha no tamanho justo do dinheiro honesto do emprego. No fim de ano chegava a ficar comovido com a sorte que o abençoava por mais um ano. Cortava o peru de natal no aconchego do lar, pensando na vida segura que alcançou, pensando em como sempre sonhou com isto.  

O branco nos cabelos começava a se tornar maioria. Mas a saúde continuava intacta.
Mais alguns anos e teria sua aposentadoria. Convinha sentar na varanda e esperar pela falta de surpresas que o aguardava.

Bang, Bang!

dezembro 18, 2009

Instruções: a leitura seguinte possui duas sugestões de acompanhamento sonoro. O inconveniente é que apenas a segunda opção dura toda leitura. Na primeira, é necessário reiniciar a música quando ela acabar.

Cada sugestão leva a uma leitura diferente do texto, imprimindo diferentes experiências. Escolha e bom apetite.

Primeira: trilha sonora por Arcade Fire. My body is a cage.
http://www.youtube.com/watch?v=Pyp34v6Lmcc

Segunda: trilha sonora de Kill Bill. Don’t let me be misunderstood.
http://www.youtube.com/watch?v=iEivAFDV0ic

 

Bang, bang!

Restavam apenas duas balas na Colt 45.

O que vão contar sobre essa história eu não sei dizer. Isso, se sair alguém vivo daqui. Nunca há muita justiça nesses casos. Não é incomum prevalecer a versão do mais covarde, aquele que se escondeu e sobreviveu.

                                                                                               *

Quem disparou o primeiro tiro não se sabe. Mas assim começou. Ele veio da entrada, e pelo som, provavelmente de uma Magnum 44. O que significava que não foi por parte de um de nós. A bala atravessou o salão, passando pelas cabeças de alce penduradas na parede, e morreu no ombro de um pobre diabo que foi ao chão espalhando cerveja pela mesa. Antes que o seu grito alcançasse a outra metade do bar, todos meus homens já estavam levantados com as armas sacadas, apontando indecisos sem saber para quem.

Nós só usávamos Colt, era uma filosofia. Levantaram algumas outras pistolas que não eram nossas, mas do mesmo modo ficaram encarando um inimigo invisível. O caso é que o homem baleado não era um dos meus. E pela indignação no rosto daqueles homens confusos, deveria ser um dos deles. O que significava que quem disparou o tiro continuava à espreita.

Uma porção de pessoas permaneceu em seus bancos, paralisadas, com as mãos para cima. Ninguém ousava respirar. Contei vinte e três pistolas erguidas e dois Winchesters. Éramos doze. O outro bando dez. Haviam cavalheiros às mesas, de todas idades, algumas putas de vestidos longos e decotes vastos, figuras conhecidas, com o rosto tomado pelo medo. Dois garçons imóveis por entre as mesas, com as bandejas ainda em mãos que refletiam a luz amarelada dos lustres. O espelho empoeirado atrás do balcão, fazia o salão maior do que realmente era.

Estávamos no meio de um fogo cruzado, era o que parecia. Precisava tirar os meus homem dali. Percebi um movimento estranho por baixo de uma das mesas. Um grupo de senhores bem vestidos, bigodes e cartolas. Foi muito rápido.

Não sei dizer quando. Num instante o salão estava tomado de balas atravessando o ar, acertando os lustres suspensos no teto, atingindo quadros na parede com a mesma violência que abatiam aqueles que tentavam fugir. Já não havia ninguém sentado. Ou já estavam mortos no chão ou tentavam chegar à saída. O cheiro de sangue e cerveja subia às narinas. O espelho estilhaçado deixava o cenário mais caótico do realmente era. Não se sabia da onde vinha o tiro. Os gritos se confundiam com o som dos disparos.

As mesas viraram escudos. Não sabia quanto dos meus ainda estavam em pé. Os homens de cartola dominaram a saída, era um suicídio tentar passar por ali. Atiravam sem distinção. Nós estávamos espalhados pelo bar e o outro grupo estava mais ao fundo. Mas percebi, que ambos atiravam em nós, mas se poupavam. Não era um fogo cruzado. Era uma emboscada! Aquele primeiro homem devia ser um inocente qualquer. Foi tudo uma armadilha.

Vi dois dos meus com a cabeça estourada no chão. Devíamos ser dez agora. Os outros, juntos, somavam dezessete pelo que consegui contar, mas provavelmente já tinham alguns mortos. Estávamos desarticulados. As balas não cessavam por cima da minha cabeça. Um tiro de espingarda arrebentou a mesa que me protegia, rolei para trás do balcão seguido de um companheiro. Encontramos mais três dos nossos amparados ali. Precisava mapear o local e retomar o controle. Era uma questão de estratégia. Cada um dos meus homens valia por dois, isso eu sabia. Os filhos da puta se movimentavam e ganhavam espaço. Avançavam para o balcão.

Com a minha 45 no braço esquerdo e a e 38 no direito fui em direção a saída, iria tomá-la à força. Levantei-me com elegância, no intervalo de recarga do oponente. Eram cinco ali. Finalmente vi um deles empunhando a Magnum que começara com tudo. Este foi o primeiro. Um tiro de 23m, em cheio no pescoço. Esgueirando pelos pilares de madeira, e cadenciando as recargas de bala, fui derrubando um a um. Recuaram, Já foram três. Os meus homens me davam cobertura, protegendo-me dos tiros que vinham do fundo do salão. O quarto estava nas escadas. Gastei quatro balas nele.

O último se escondeu agachado atrás de uma mesa derrubada. Corri em direção às costas dela, de tal forma que ficamos lado a lado, separados por aquela única camada de madeira, um de costas para o outro. Ele atirou diretamente por ela. Um, dois três tiros, perfuraram cegamente a mesa passando longe de mim, mas pela trajetória das balas pude calcular onde estava. Bastou um tiro em resposta, atravessando a mesa, a carne, os ossos, a vida e a altiva vestimenta preta que usava. A saída era nossa.

Precisava arrastar meus homens para lá. Repus minhas balas. Ouvi alguns gritos familiares. O bando do fundo chegara ao balcão, eles eram em maior número. Foi uma carnificina, mataram todos ali. Então, naquele momento, não importava mais fugir. Só pensava em acabar com cada homem em pé daquele bar.

Existem momentos que você sabe estar fazendo parte da história. Pude imaginar as pessoas da cidade contando esse episódio, elegendo quem seria o bandido e quem seria o mocinho. O título pouco importava.

Ia ser épico.

Atirava com os dois braços ao mesmo tempo, em direção ao fundo. Vi um companheiro avançando com a mesma fúria. Certamente também queria virar lenda.
Acreditei que éramos só nós dois naquele momento. Não errei no cálculo. Chegamos a parte central do salão. Eles atiravam do balcão agora. Cada um foi para um lado. Eles eram seis. Cinco. Quatro. Com um tiro numa garrafa que se estilhaçou, ceguei um quinto. Com outro tiro certeiro, meu companheiro deu cabo a ele. Três contra dois. Procurei ganhar espaço. Avancei, sempre girando nos pilares. Um tiro encontrou minha costela direita. De raspão. Sangue, e dessa vez era o meu. Mais uma rajada da Winchester 22. Não precisei olhar para saber que tinha perdido meu último homem. Agora eles se escondiam, economizando tiros. Estavam mais cautelosos.
Três contra um. Fiquei sem balas na 38. Procurei mais munição. Nada. Como me descuidei?

Eu não tinha muitas chances.
Aprendi que um pistoleiro sempre guarda uma bala para si. Que a morte, quando inevitável, deveria vir de sua própria arma. Ela protege sua honra. Não havia melhor jeito de morrer do que pela minha 45.
Mas não havia coisa pior do que poupar esses três covardes. Podia ouvir eles recarregando as armas do lado de lá. Podia respirar o medo deles.

Restavam apenas duas balas na Colt 45.

                                                                                          *

Não parava de sangrar. Respirei. Será que eles sabiam por que atiravam em mim? Será que um dia eu saberia? Não me importava mais.
Um giro, fico de frente ao balcão, grito por eles, engatilho, levantam em resposta, prontos para atirar, prevejo o movimento deles pelo espelho.

Disparo. Bang, bang! A história me espera.