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Na lanchonete

dezembro 31, 2009

 

Ela diz alguma coisa para mim. Sei disso porque seus lábios se mexem sem parar. Sei disso porque o campo de visão humano capta mesmo aquilo que está fora de foco, escapando pelas bordas dos olhos, fazendo com que eu consiga perceber ela gesticulando, movimentando as mãos, mas nada muito além de borrões. Está sentada ao meu lado, conversa comigo, mas o que, eu já não sei. Pode ser algo importante, isso que ela está querendo me contar. Pode ser uma pergunta e, se for, não saberei responder. Não tem importância. Pelo menos agora, nada importa mais do que o sache de açúcar que está prestes a cair da mesa à frente. 

A situação se deu da seguinte forma.

O homem de terno preto, gravata cinza, entrou num passo ligeiro, como quem está com o horário de almoço contado, ou que estacionou em local proibido. Mas não devia ser nem uma, nem outra coisa pois, apesar de tudo, demonstrava  tranquilidade. O caso é que se dirigiu até outro rapaz, semelhantemente vestido, que o esperava com uma bebida em sua xícara e brincava com o desnível de sua mesa  que a deixava manca de um lado. Antes de se sentar, o homem recém chegado pediu um café para garçonete que passava. Finalmente sentou. Trocaram algumas dúzias de palavras. Pareciam animados. Podiam estar conversando sobre trabalho, futebol, televisão, cinema, mulheres, casamento, homens, adultério, amendoins tostados, filosofia grega, bolsa de valores, regime, metrosexualidade, problemas do casamento, problemas de solteiro, poker, blues, ou melhor, jazz, sobre o assassinato de uma freira num vagão de metrô, o aparente superdesenvolvimento das crianças devido aos hormônios nos frangos de hoje em dia, a queda de outro avião, a garçonete bonita e quem a convidaria para sair. Então ela voltou, a garçonete, trazendo o café num pires com uma colher e uma cestinha de palha que continha cerca de 8 saches de açúcar, 10 de aspartame, e um adoçante líquido, isso se fosse igual ao que trouxeram para nossa mesa. Ninguém convidou  a garçonete para sair. Ao invés disso, continuaram distraídos com o que falavam antes.

O homem pegou um sache de açúcar.

Abanou para que o açúcar descesse para um lado do pacote, deixando o outro livre para abrir. Com um movimento elegante e ao mesmo tempo automático rasgou o papel da embalagem, sem olhá-lo, lentamente, pois prestava atenção à fala do outro rapaz. O rasgo não atravessou o pacote todo, de modo que se formou aquele penduricalho do picote da embalagem. Provavelmente achava que assim a bagunça era menor, já que não se dividia o sache em duas partes. Despejou todo o açúcar na xícara. Cuidadosamente, qualidade que apreciei muito, dobrou diversas vezes o sache já vazio, até que virasse um pequeno quadradinho que postou na borda do pires, um verdadeiro ritual. Pegou a colher e mexeu o café com movimentos círculares, no sentido anti horário. Desceu a colher novamente no pires, e trouxe a xícara à boca. Provou. Dirigiu um rápido olhar ao café, franzindo a testa. Largando a xícara, pegou outro açúcar da cestinha de palha.

O ritual se repetiria. Novamente aqueles gestos precisos e ao mesmo tempo tão naturais. O mesmo rigor, o mesmo procedimento. Mas para minha surpresa, desta vez, ele não pôs todo o conteúdo do pacote. Com o mesmo cuidado de todos os movimentos, pousou o sache de açúcar, com a sobra que restou, na borda da mesa, próxima à cestinha de palha, de tal forma que pudesse eventualmente utilizá-lo convenientemente em outro momento. Experimentou novamente o café e, pelo jeito, aprovou.

Pouco a pouco a mesa balançava, pedindo por um calço qualquer. Pareciam não se incomodar. Talvez por isso não reparassem que o sache pendia cada vez mais para o limite da mesa. Mais um solavanco. Foi suficiente para que o sache deslizasse ficando metade na mesa e metade suspensa. A conversa deles não se abalou com o fato, mas minha respiração parou.

Imaginava diferentes formas do pequeno pacote de açúcar se atirar dali de cima. O picote solto balançava levemente debochando da altura. Ele poderia rodar, cerca de duas vezes, perdendo o pouco do conteúdo que ainda restava, chegando vazio ao chão. Inverossímil. Poderia cair objetivamente, sem rodeios, com a parte pesada para baixo e por fim, terminaria deitada no chão. Mais convincente. O homem poderia perceber e resgatar o sache ou a garçonete voltar e chamar a atenção deles dizendo – Senhores. Reparem ao sache prestes a cair da mesa. Um ventinho e ele já era. Mais consideração, por favor!
O ventilador, na parede à esquerda, gira no automático e está a ponto de ficar frente à mesa manca. A tensão é insuportável para mim.

– Você está me escutando? Pergunta ela, com seu habitual timbre de voz irritado, sentindo-se não mais que um borrão.

Olho para ela e fico sem fala.
Não me acostumo a voltar para este mundo de perguntas e respostas.

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  1. janeiro 3, 2010 7:47 pm

    textos geniais
    gosto musical também
    antlers, arcade e pullovers!

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